28 de dez. de 2014

os dias

Eles correm, quase voam até finalmente chegar aqui. Mas quando amanhece e se dá conta de que é o último do ano, Domingo respira fundo e paira, sem pressa nenhuma de passar. Calmo por natureza, hoje ele se dá ao luxo de ser ainda mais lento e quieto. Como se quisesse ser plenamente Domingo pela última vez desta vez. E mesmo sob o sol excitado pelo verão, a tarde desliza tranquila, vai se esticando, preguiçosa, e fecha os olhos lentamente quando a noite chega, diferente das noites ansiosas de tantos Domingos antecipando a Segunda-Feira.
Os próximos três dias, cada vez mais últimos, também entram nesse ritmo estranho e seguem desconectados do relógio e suas urgências. Suspenso na rede, o Tempo tira férias, balançando entre o ano que termina e o que está começando, e quando amanhecer novamente, Domingo vai respirar fundo e pairar, como se fosse a primeira vez.

21 de dez. de 2014

natal

Todo mundo foi embora. Aos poucos, é verdade. Uma turma se mudou num ano; outra, meses depois. E eu fui ficando e ficando e fiquei. Sozinho. Por sorte, sou muito maleável, me adapto bem às circunstâncias. Cá entre nós, não sinto tanta falta assim de ninguém, quer dizer, na maior parte do tempo. Mas quando chega dezembro, confesso, bate uma saudade. O pessoal era animado e na hora de armar a festa, nossa, a gente caprichava no visual. Espalhados pela casa, dávamos um colorido todo especial a cada canto, muito brilho, luzes, era lindo mesmo! A criançada brincando com a gente, bons tempos! Agora todos cresceram, fico espantado vendo como o tempo passou... Mas não vou dar uma de saudosista, até porque hoje em dia também tem festa. A noite sempre é alegre, com música e o maior capricho nos comes e bebes, e mesmo sozinho, eu continuo aqui, a postos, no lugar de sempre, dando as boas vindas pra quem chega. É uma baita responsabilidade, ser o único vestido a caráter, segurando o clima da noite! Mas também é uma delícia continuar existindo pra quem, ano após ano, espera esse dia pra me reencontrar.

18 de dez. de 2014

natal

trocar presentes
celebrar encontros
lembrar dos ausentes

rimar alegria com melancolia

desde que me lembro
a saudade mora
em dezembro

13 de dez. de 2014

afeto

a língua-lixa lambe
com delicadeza
faz cócegas, arranha
mistura doçura e dureza 

na língua dos gatos
amor rima com aspereza

10 de dez. de 2014

A Vida é Logo Aqui

(…) Dani, não esquece! Toma logo o antialérgico se levar uma picada!
Entro no ônibus abraçando minha mochila feito travesseiro, e me encolho num dos últimos bancos, cara grudada na janela, dando tchau pra minha mãe, de pé, ali na calçada, entre mil mães a única com vontade-de-chorar-disfarçada-de-sorriso. Seu rosto me diz que ela está feliz porque estou indo e aflita porque estou indo. Quando o ônibus começa a se mover, a turma grita e festeja a partida enquanto as mães vão ficando pra trás, e então peço -- é quase uma prece -- pra que todos os temores fiquem lá, com ela, plantados na calçada.

Trecho de "Dani Vai Dançar", na coletânea organizada por Nelson de Oliveira, chegando com o ano novo com o selo do Sesi-SP Editora.

8 de dez. de 2014

esperar

(*)
o chá, as manhãs, as histórias: todas as coisas têm seu tempo de nascer.  

(*) a ilustração é de Eva Vásquez

3 de dez. de 2014

sementes

Hoje lembrei daquela experiência que a gente fazia na escola, em algum momento do antigo curso primário: dentro de um potinho transparente, colocávamos um grão de feijão sobre um punhado de algodão embebido em água. Depois, era só deixar o recipiente num lugar bem iluminado, umedecer o algodão, caso secasse, e esperar. Em poucos dias, o feijão enrugava e logo aparecia a pontinha de um caule que cresceria rápido, feito mágica, rodeado de folhas verdinhas. Aguardo o início do ano com a mesma expectativa da menina que ficava observando os primeiros sinais de mudança dentro daquela nuvem de algodão, ansiosa para ver os brotos de tantas sementes que plantei em 2014.

28 de nov. de 2014

simulacro

rosa de pano, maçã de cera, joia de vidro
-- e certos sorrisos --:
tantas coisas iludem o olhar distraído

22 de nov. de 2014

18 de nov. de 2014

agitação

Árvore crespa, cabelo despenteado, pensamento inquieto: o dia amanheceu espalhando vento.

12 de nov. de 2014

porto pra lá de alegre

Estou em Porto Alegre, participando da 60ª Feira do Livro e visitando escolas da cidade. Sempre é muito gostoso, mas foi bem mais do que isso com essa turma animadíssima da Escola Municipal João Goulart. Fui recebida com entusiasmo, e não só: trabalhos sensacionais, orientados por professoras muito bacanas, transformando meus livros em pontos de partida prum monte de discussões interessantes. A professora de matemática, por exemplo, conseguiu fazer contas com o "Buááá!", organizando, em gráficos, quantas vezes cada um chorou por qual motivo -- esse aí embaixo dá conta de registrar choros de alegria:

Em outra classe, o assunto foi o "Mistério do Tempo", inspirando uma série de relógios incríveis! Que tal este marcando tão bem a ideia do nosso tempo virtual?

Criatividade sem limites também nos livrinhos produzidos pelos pequenos, com direito a mudanças no rumo da história e também no título: o "O Patinho Culpado", por exemplo, ficou "Humilhado": 

Delícia. 

8 de nov. de 2014

despedida

Miúda Felina é uma gata longeva. Dizem que seus quinze anos equivalem a setenta e tantos dos nossos, mais de oitenta dependendo da raça. Seja quanto for, é muito, mas até a semana passada eu não pensava nisso, ou preferia não pensar. É verdade que já faz tempo que ela deixou de ser ranzinza e temperamental como a Araci, a gata da bruxa Creuza; há muito parou de se meter em encrencas como a Princesa, do “Fala, Bicho!”, e também já não é tão saliente como a Sorte, companheira da protagonista do “As Namoradas do Meu Pai”. Com os anos, ficou mais dócil, silenciosa, quase não mia, dorme muito, mas continua inspirando os personagens felinos das minhas histórias.
Dias atrás, Miúda ficou doente pela primeira vez. Correria, pronto-socorro, exames e um diagnóstico previsível – o problema é sério e crônico como a própria velhice.
Enquanto escrevo, ela tira uma soneca, acomodada sobre o roteador quentinho. De vez em quando abre os olhos e fica piscando pra mim -- o oi mais azul que recebo todos os dias --, como se quisesse dizer: tá tudo bem. Depois muda de ideia, chega perto e, com toda a intimidade dos nossos quinze anos juntas, pula no meu colo. Antes de voltar a dormir, olha pra mim como se soubesse que estou escrevendo sobre ela. Sobre a saudade que já estou sentindo de você, minha Miúda Felina.

(*) mais trabalhos do artista plástico Endre Penovác aqui.

5 de nov. de 2014

abelha


Por causa da chuva inesperadamente forte, fechei os vidros do carro e avancei devagar, tentando enxergar através da enxurrada de pingos grossos que o parabrisa não dava conta de dissolver. Achei que estava sozinha, mas não: éramos eu e a abelha. Medo e prudência deram a ordem: não se mexa! Então continuei dirigindo como se não estivesse aflita com a tempestade e a abelha e a vontade de sair correndo dali, trocando a marcha e girando a direção com movimentos mínimos, ao contrário da abelha que começou a voar em giros desesperados pelo interior do carro, zumbindo ameaçadoramente cada vez que batia num dos vidros, atraída pela claridade. Num gesto corajoso, me mexo rapidamente, alcanço a maçaneta da outra porta e abro uma fresta da janela, mas a abelha, estranhamente, não aparece. Presto atenção, mas já não ouço o zumbido, só a chuva espalhando seu barulho e água pelo banco do passageiro. Por um momento, penso que a abelha se foi, respiro aliviada e fecho o vidro. Então vejo: a mancha amarelo-escuro sobre o painel preto, parada, quieta, ao meu alcance: presa fácil de um lenço de papel certeiro. O plano é simples, mas não posso falhar, sob o risco de despertar sua ira. Chego a puxar um lenço da caixinha quando, de repente, ela se move, lentamente, deslizando pelo painel até parar de novo, agora quase na minha frente. Por um momento, eu e a abelha: frágeis, presas na mesma armadilha, com medo uma da outra. Amassei o lenço de papel e abri completamente o vidro da minha porta: a abelha ainda hesitou um instante, intimidada pelo vento forte, mas num ímpeto alçou voo, confiante, e despareceu no meio da chuva, agora mais fraca, pingando só uma lembrança de  tempestade.

4 de nov. de 2014

maravilha

a chuva acordou o dia
com barulho e ventania

depois virou garoa fina
e choveu poesia

pingos de brilho
no cabelo da menina

30 de out. de 2014

a franja do professor

Blandina Franco, Gilles Eduar, Maria Amália Camargo, Índigo e eu contamos tudo o que "Aconteceu na Escola", livro novo saindo do forno da editora Globo nos próximos dias. As ilustrações são do Rafa Anton, que desenhou o meu professor com a franja do jeitinho que imaginei.

28 de out. de 2014

trecho

(…) Tenho doze anos e sempre dou um jeito de ficar doente ou inventar uma desculpa pra não participar das aulas de educação física. Mas hoje o professor não me dispensou e depois do aquecimento me convoca pra fazer parte de um dos times de vôlei. Não tenho chance de dizer que não quero jogar, minha boca trava, a voz desaparece pra sempre. Então ele me chama, do centro da quadra, apontando a posição que devo ocupar, e chama de novo porque não me mexo, na inútil esperança de que alguém se ofereça e me salve do desastre. Enquanto caminho em direção à quadra percebo um grupinho de meninas cochichando e rindo, na mesma hora tenho certeza: estão falando de mim. Olho para o chão e sigo, devagar, suando dentro do uniforme, desconfortável, desajustada, sempre eu. O jogo começa, a bola passa voando por cima da minha cabeça, uma vez, duas, e de novo, as meninas vão trocando passes como se eu não existisse, e de repente acontece: uma coisa por dentro, forte, quente, uma espécie de raiva que me lança pro alto, é só um impulso mas me deixo levar e subo, por um instante meus olhos ultrapassam o limite da rede, então estico o braço e vejo minha mão lá em cima, alcançando a bola antes das outras mãos. Quase sem querer marco um ponto, todo mundo comemora. Pela primeira vez, aplausos (…).

Aceitei com muita alegria o convite de Luis Brás pra participar de uma antologia recheada de autores bacanas, que deve sair em breve, com o selo da Sesi-SP Editora.

17 de out. de 2014

que legal!

Acabo de saber que a versão do "Como Começa?, editado na Suécia pela Opal Bokforlaget, entrou em uma lista de bibliotecas públicas. Viva!

14 de out. de 2014

prece

chove, chuva,
chove sem parar
chega de greve
chova como bem desejar
com barulho de trovão
com raiva de granizo
ou até quietinha
molhe todas as coisas
com alegria de garoa fininha
chove, chuva
chove sem parar
com música de água
vamos todos dançar

9 de out. de 2014

Aconteceu na Escola

Gilles Eduar, Maria Amália Camargo, Blandina Franco, Índigo e eu nunca estudamos juntos, mas tivemos a sorte de partilhar histórias deliciosas em "Aconteceu na Escola", livro novo saindo logo, logo, com ilustrações do Rafa Anton e edição caprichada da Globo Livros.

6 de out. de 2014

Reviravento

Às vezes, ele chega de mansinho, diz bom dia pela fresta da janela e assobia no mesmo tom dos passarinhos. Mas quando acorda nervoso, espalha a notícia por toda parte, deixando a árvore crespa, o cabelo despenteado e o pensamento inquieto. Vento é assim: muda a cada momento, mexe e remexe com tudo, até com a imaginação da gente. Porque ele sopra histórias no ar pra todo mundo escutar e também faz as palavras voarem quando quer fazer poesia.


Taí a 4ª capa do "Reviravento"que sai logo, logo, pela Record!

26 de set. de 2014

ver o mundo

Eu vi a lua cheia iluminando a noite sobre o Hyde Park, e um gato chamado Mitsi dormindo entre as máscaras de uma lojinha em Veneza. Vi tantas ruas cheias de gente e também vi dezenas de gôndolas vazias, descansando com seus fantasmas sobre as águas quietas de um canal. Trouxe comigo um monte de sensações e um calendário pra ver as ilustrações de Wolf Erlbruch todos os dias. Ver o mundo é tão bom. Voltar é tão bom.

4 de set. de 2014

viajar

pela janela
contemplo
a vida em movimento
e ronrono:
lá fora e aqui dentro
tudo é sonho

a ilustração é do Daniel Kondo, e eu volto no final do mês.

2 de set. de 2014

belas adormecidas

Todas as lembranças encontram um lugarzinho pra dormir dentro da gente. Algumas adormecem na cabeça, muitas se acomodam no coração, mas não só. Tem lembrança que descansa na língua e vive acordando, basta ser chamada pelo sabor de um doce da infância. Lembrança é assim: desperta por causa de um cheiro, uma música, certas palavras, uma paisagem. Nem todas têm um sono tranquilo --  são lembranças meio inquietas, não conseguem sossegar talvez porque tenham a ver com um passado que não passou de verdade. Mas também existem as que mergulham num sono tão profundo que só espreguiçam quando se cutuca muito. Mesmo assim, continuam sonolentas e embaçadas, confundido a gente com os sonhos que elas estão sonhando.

31 de ago. de 2014

sol

o inverno amanheceu sorrindo
vestiu azul e se esquentou
com o abraço do domingo
  

26 de ago. de 2014

de uma história que está começando (2)

Tenho doze anos e sempre dou um jeito de ficar doente ou inventar uma desculpa pra não participar das aulas de educação física. Mas hoje o professor não me dispensou e depois do aquecimento me convoca pra fazer parte de um dos times de vôlei. Não tenho chance de dizer que não sei jogar, minha boca trava, a voz desaparece pra sempre. Então ele me chama, do centro da quadra, apontando a posição que devo ocupar, e chama de novo porque não me mexo, na inútil esperança de que alguém se ofereça e me salve do desastre. Enquanto caminho em direção à quadra percebo um grupinho de meninas cochichando e rindo, na mesma hora tenho certeza de que estão falando de mim, por isso abaixo a cabeça e sigo, devagar, suando dentro do uniforme, desconfortável, desajustada, sempre eu. O jogo começa, a bola passa voando por cima da minha cabeça, uma vez, duas, e de novo, o time vai trocando passes como se eu não existisse, e de repente algo acontece, uma coisa por dentro, forte, uma espécie de raiva que me lança pro alto, é só um impulso mas me deixo levar e subo: meu corpo ultrapassa o limite da rede, o braço esticado e minha mão lá em cima, alcançando a bola antes das outras mãos com um toque certeiro, delicado, inesperado: marco um ponto para o time, todos comemoram. Pela primeira vez, aplausos.
(...)

25 de ago. de 2014

19 de ago. de 2014

de uma história que está começando

Filha, eu estou lendo, e quem quer sorvete é você. É só ir até lá e pedir pro moço! 
Talvez seja meio-dia, o sol é o dono da praia e estou sentada na areia, a dois passos dos pés da minha mãe. Tenho seis anos e tudo o que mais quero é um picolé de chocolate. As três meninas continuam ali, de pé, ao lado do sorveteiro, conversam sem parar, palitos pingando chuva sabor limão, quem sabe abacaxi, na areia quente. Estão hospedadas no mesmo hotel que eu -- já estavam lá quando chegamos. Então não. Pego a pazinha vermelha, cavoco a areia com força e faço um buraco enorme querendo me enterrar com a minha timidez (…).

18 de ago. de 2014

dicionário imaginário

--> Ansiedade (s.f.): é o que acontece quando o tic não consegue esperar e quase atropela a vez do tac.

6 de ago. de 2014

o passado

no portarretrato: a infância do filho e a presença da mãe: era um domingo e eu não sabia que estava fotografando a saudade.

4 de ago. de 2014

bom dia

uma manhã de verão no meio do inverno, um sorriso abrindo com a porta do elevador, uma ideia pra continuar o conto que comecei a escrever: um dia com tudo pra ser bom.

28 de jul. de 2014

inverno

é como um toque de recolher: os dias vão embora mais cedo, encolhidos de frio, e a vida lá fora fica mais quieta pedindo pra gente escutar as palavras de dentro.

23 de jul. de 2014

escrever

É como mobiliar uma casa vazia.
Às vezes começo colocando um sofá e tapetes na sala. De vez em quando, os primeiros móveis vão direto para o quarto, e é lá que fico morando um tempão, esquecida dos outros espaços da casa.
Habitar um novo texto: cada vez acontece de um jeito, mas uma história só termina quando a casa está completa, com roupas dentro do armário, cheiro de bolo assando no forno, portarretratos e objetos espalhando lembranças por todos os cantos.
Enquanto moro nesse lugar, muitas vezes mudo a decoração, hospedo pessoas que vão e vem, aprendo a conviver com quem vai ficando. No final, quase sempre é difícil abandonar essa morada, tudo em volta já se tornou querido e familiar demais. A hora de ir embora sempre é um pouco triste, mas não só: também fico feliz vendo a casa finalmente pronta pra receber visitas.
Depois disso, passo um tempo perambulando pela cidade, me atrevo por bairros desconhecidos, descubro ruas simpáticas e, em algum momento, me interesso por outro endereço. Nos primeiros dias, estranho os barulhos da vizinhança, a cara do jornaleiro, a distância até a padaria. Mesmo assim, decido ficar, vou me instalando aos poucos e penduro os primeiros quadros nas paredes brancas, com o cheiro da tinta fresca anunciando uma história novinha em folha.

11 de jul. de 2014

era uma vez outra Cinderela

… e a história termina assim:

A festa de casamento foi magnífica e os primeiros dias no castelo pareciam um sonho. Tanto que a princesa precisava se beliscar a todo instante para ter certeza de que não estava delirando. Mesmo assim, depois que anoitecia, Cinderela ia entrando em pânico, com medo de que tudo se desmanchasse por encanto, à meia-noite. Como não via a hora de ser feliz para sempre, o príncipe ordenou que todos os relógios do reino fossem destruídos. Nunca mais se ouviu nenhuma badalada e, aos poucos, a princesa sossegou. Mas não muito. Acontece que o Tempo é poderoso e não para nem mesmo sob as ordens de um príncipe. Ao final de cada dia, continuava escurecendo e, perto da hora H, o coração da princesa disparava como um alarme. Então o casal pensou e pensou até descobrir um outro jeito pra continuar sendo feliz: todas as noites, ouvindo o tic-tac do coração da Cinderela, eles trocam juras de amor eterno até a meia-noite seguinte. 
Por enquanto, está dando certo. 

1 de jul. de 2014

dois

o mesmo vento
envolve
dois pensamentos

a mesma tarde quieta
acolhe
duas bicicletas

no mesmo segundo
giram
dois mundos

e a ilustração é da Maria Eugenia.

18 de jun. de 2014

esboços

Meu nome é Preto Pretinho Tom Domenico Xavier Ogato Péricles-da-Silvia.
Não costumo me apresentar assim e nunca fui chamado desse jeito, quer dizer, com tudo junto ao mesmo tempo. Mas já que resolvi escrever um livro sobre as minhas sete vidas vocês precisam saber que tenho – ou melhor: tive -- todos esses nomes. Um de cada vez, claro.
Fora os apelidos. Pipo, por exemplo, virou uma espécie de sobrenome na época em que me chamavam de Ogato. Já o detestável Ronrom praticamente substituía o nome oficial da quinta vida: “XAVIER” só era mencionado (assim mesmo, em voz maiúscula) nas horas mais... Como dizer? Bem... Tensas. Em compensação, também tive o prazer de ser tratado por Dom na maior parte do tempo em que me batizaram de Domenico. Dom é adorável, não acham? Simplesinho e, ao mesmo tempo, tão elegante! Cá entre nós, se tivessem pedido a minha opinião, bem que eu gostaria de ter sido sempre e apenas Dom, não só durante a quarta vida, por sinal, uma das melhores (…)

em construção: um "começo de história" e um "estudo de gato" do Daniel Kondo, 

13 de jun. de 2014

chegou!

A ilustração de Maria Wernicke não só renovou o meu "Longe" como ampliou a narrativa no seu melhor tom. Estou feliz demais com essa parceria e com a edição primorosa da Salamadra.

11 de jun. de 2014

na cabeceira

"As palavras são objetos magros incapazes de conter o mundo."

Amando todas as palavras do último livro de Valter Hugo Mãe ("A Desumanização").

6 de jun. de 2014

gota de chuva

   dia cinza
      tinge    
      tudo
        de
     triste
   a xícara
  as ideias
   a gente
     nada
    resiste

22 de mai. de 2014

dia feliz

Acabo de saber que o "Como Começa"vai ser publicado na Suécia, pela Opal Bokforlaget, e na Turquia, pela Yapi Kredi Yayinlari. Alegria, alegria!

13 de mai. de 2014

era uma vez um gato (1)

(…) e as coisas continuaram embaçadas durante algum tempo. Confesso que não lembro de quase nada dessa época, dias e noites eram só aquele empurra-empurra, disputando o leite e o melhor lugar no colo quentinho de mamãe. Pouco a pouco, porém, meu espírito independente começou a se manifestar – assim que consegui me erguer sobre minhas quatro patas, comecei a explorar o mundo além da nossa casa-caixa. Fui o primeiro a me atrever pela superfície lisa e geladinha do lugar onde estávamos. É verdade que, no início, dei umas desequilibradas, mas logo peguei a manha da coisa e, cautelosamente, fui vasculhando canto por canto daquele espaço enorme. Avançava um bocadinho mais cada vez que saía de perto de mamãe, experimentando novos movimentos, descobrindo cheiros e sons diferentes, que faziam minhas orelhas empinarem por conta própria e minha cabeça girar ora pra cima, ora pra trás, de um lado, do outro, já atento e curioso, como eu continuaria sendo ao longo das minhas sete vidas.

8 de mai. de 2014

trecho

De uma história que está começando: 

(…) Não sei durante quanto tempo acreditei que esperança fosse um objeto que a gente podia guardar num armário e perder por aí, como um guarda-chuva. Ou quase: mesmo na minha imaginação de criança, a esperança já parecia bem mais valiosa, porque minha mãe vivia perdendo guarda-chuvas, mas nunca se chateava tanto por isso (…)  Anos depois, descobri que a esperança nem é tão diferente assim de um guarda-chuva: e o que mais pra nos proteger e ajudar a seguir em frente durante as tempestades?

4 de mai. de 2014

30 de abr. de 2014

O lugar das coisas

Foi uma delícia conversar com os pequenos do Colégio Elvira Brandão sobre "O Lugar das Coisas" e aprender mais essa: "olha só como as coisas vão mudando de lugar!".

24 de abr. de 2014

De novo, tão novo

dois sonhos:
ter um livro ilustrado pela maravilhosa Maria Wernicke
e levar um texto antigo para uma casa nova

uma enorme felicidade:
"Longe", de novo, e tão novo nos traços delicados da querida Maria, saindo em maio, pela Salamandra.

19 de abr. de 2014

Escrever

Dias atrás, li e me encantei com a frase do escritor Sérgio Rodrigues:
"Escrever um romance é como dirigir na neblina".
...
Devagar e às cegas, às vezes durante longos percursos, vislumbrando o caminho em alguns trechos, quando a névoa, mais rala, deixa entrever o que está logo adiante. E então tudo clareia.

10 de abr. de 2014

cantiga (7)

a chuva molhou a rua
depois de um dia de sol
a tarde chorou baixinho
calou até o rouxinol

a noite chegou mais cedo
a lua não apareceu
a rua ficou escura
e o mundo entristeceu

(*) o cravo brigou com a rosa
     debaixo de uma sacada
     o cravo saiu ferido
     e a rosa despedaçada


     o cravo ficou doente
     a rosa foi visitar;
    o cravo teve um desmaio
    a rosa pos-se a chorar

7 de abr. de 2014

cantiga (6)

estrela da noite
que brilha pra mim
eu faço um desejo e o céu me diz sim

estrela da noite
que brilha assim
me diz que os sonhos também não têm fim    

(*) coelhinho da Páscoa
      que trazes pra mim? 

     um ovo, dois ovos, três ovos assim 
     coelhinho da Páscoa
     que cor eles têm?

     azul, amarelo, vermelho também 

4 de abr. de 2014

Instruções para identificar anjos

1. Perto de todo bebê sempre tem um anjo. Às vezes, dois ou até mais. Nesse caso, não se trata de privilégio -- é só uma questão de oferta e demanda: por acaso, alguns bebês nascem em épocas em que um grande número de anjos simplesmente está desocupado. Acontece.

2. Os que assumem a guarda logo de cara cuidam de transformar em música os primeiros sons que o bebê escuta quando chega ao mundo. E que não se pense em querubins tocando harpa! Anjos compõem suas melodias com outras notas -- voz de mãe, conversa de passarinho, barulho de chuva e até chiado de vento.

3. Conforme vão crescendo, os bebês passam a ser guiados por anjos mais ágeis, dotados de grande capacidade de correr ou voar rapidamente, além de uma incrível perspicácia: são capazes de prever e evitar um número enorme de acidentes, atentos a degraus, objetos pontiagudos, vidros, piscinas, lareiras, fogões, ferros de passar e tudo o que faz parte do mundo ainda tão pequeno.

4. Depois dos primeiros anos, esses guardiões são substituídos por anjos mais interativos, que às vezes até sopram ideias, gostam de despertar curiosidades e acompanham as primeiras aventuras. E, claro, protegem -- nunca esquecem de ser anjos.

5. Os anjos continuam por perto -- talvez não tão perto, mas conectados --, durante muito tempo. A vida toda até. É só chamar, eles estão a postos. 

2 de abr. de 2014

cantiga (5)

Joaquim, gatinho danado
apareceu lá em casa
e foi logo entrando sem ser convidado
Foi só miar
de um jeito amoroso
pra me conquistar, que gato tão dengoso!

Joaquim, gatinho miúdo
como é que consegue
comer tão depressa e acabar com tudo?
Foi só me olhar
de um jeito azulado
pra me conquistar, que gato mais safado!

Joaquim, gatinho bagunceiro
some de repente
pra ser encontrado sob o travesseiro
Foi só pular
direto no meu colo
pra me conquistar, que gato mais faceiro!

(*) Alecrim, alecrim dourado/que nasceu no campo/sem ser semeado
Foi meu amor/que me disse assim/que a flor do campo é o alecrim

Alecrim, alecrim miúdo/
que nasceu no campo/perfumando tudo
Foi meu amor/que me disse assim/que a flor do campo é o alecrim

Alecrim, alecrim aos molhos/por causa de ti/choram os meus olhos
Foi meu amor/que me disse assim/que a flor do campo é o alecrim

1 de abr. de 2014

cantiga (4)

de onde é que o menino
tira tanta alegria?
como é lindo o menino
seu sorriso é poesia

como poderei viver?
como poderei viver?
sem a sua, sem a sua
sem a sua companhia

(*) como pode um peixe vivo 
      viver fora d'água fria
      como pode um peixe vivo
      viver fora d'água fria?
      
      como poderei viver?
      como poderei viver?
      sem a sua, sem a sua
      sem a sua companhia


30 de mar. de 2014

cantiga (3)

hoje é domingo
dia de preguiça
a preguiça é delícia
bate na gente
e a gente espreguiça
bate no gato
o gato ronrona
seu pelo se eriça
batem na porta
a gente não abre
todo mundo dormindo
porque hoje é domingo

* hoje é domingo
   pede cachimbo
   o cachimbo é de barro
   bate no jarro
   o jarro é de ouro
   bate no touro
   o touro é valente
   bate na gente
   a gente é tão fraco
   e cai no buraco
   o buraco é tão fundo
   acabou-se o mundo

27 de mar. de 2014

cantiga (2)

se essa rima
se essa rima fosse rica
eu cuidava
eu cuidava de guardar
num cofrinho
num cofrinho bem secreto
só pra ler
só para o meu bem-querer

23 de mar. de 2014

20 de mar. de 2014

bom dia, outono!

hoje cedo o vento espalhou a notícia pelas árvores, provocando agitação entre as folhas: da janela, vi as primeiras a mudar de roupa, vestindo amarelo pra saudar a nova estação.

17 de mar. de 2014

silêncio: meninas trabalhando!

De Agatha Cristina, 10 anos, durante a "Roda de Rima", lá na Biblioteca São Paulo:

E agora, Aurora, cadê você?
Queria te ver agora
Mas você foi embora
Agora é você que chora!


11 de mar. de 2014

Convite

o arroz é branquinho quando está sozinho
mas sua cor e sabor mudam com um bom caldinho

a palavra é como o arroz: quando está só, diz uma coisa
mas pode dizer muito mais, depende do que vem depois

com uma porção de imagens e uma pitada de magia
a palavra também muda e fica com gosto de poesia
...
Sexta-feira, dia 14, a partir das 10h, tem "Roda de Rima" na Biblioteca São Paulo. Vem!

26 de fev. de 2014

folia

A gente se reunia no pátio do prédio e combinava tudo, tipo um ensaio geral. Depois, todo mundo de mãos dadas, formávamos um cordão de foliões pra atravessar a avenida da praia de José Menino, em Santos, devidamente equipados com bisnagas coloridas, sacos de confete, muitos rolos de serpentina e um bom estoque de martelinhos de plástico. Organizados em alas, os grupos se posicionavam em pontos estratégicos ao longo da calçada, a postos pra dar banho de água e alegria em quem passasse -- e quem não entrava no espírito da festa, levava muita vaia e marteladas. Lá pelas tantas, mães e pais apareciam chamando pra jantar, dando início ao bloco dos só-mais-um-pouquinho, o samba-enredo que cantávamos juntos até cansar. Sob protestos, a turma dispersava já marcando um encontro logo cedo, na praia. Não sei dos outros, mas eu me recusava a ir pra cama e adormecia no sofá da sala, exausta, ouvindo os ruídos que seguiam chacoalhando a cidade noite adentro, com o carnaval grudado no meu corpo em forma de confete.
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Pra animar o blog, um texto parecido com os de outros carnavais, já que continuo na folia da arrumação pós-reforma...

18 de fev. de 2014

quase lá


A reforma finalmente terminou. Até o final do mês -- espero! -- volto pra casa e para o meu velho-novo escritório, com tudo em ordem: livros na estante, passarinhos na janela, ideias na cabeça e tempo de sobra pra passear de bicicleta.

A ilustração veio daqui.

29 de jan. de 2014

O baile das formigas (*)

Chateada com o trágico final da história da sua irmã, a jovem cigarra resolveu imitar a formiga. Neste verão, nada de farra! Trabalharia incansavelmente. Bom, talvez nem tanto assim... Mas estava decidida a não aceitar os convites da turma para as cantorias de sempre. Quem disse que não dá pra trabalhar cantando?

E foi assim que a jovem cigarra encarou o batente, cigarreando com energia e vibração do raiar do dia ao pôr do sol. Lá pelas tantas, exausta e sem o menor pique para emitir seus famosos agudos -- mas com o freezer bem abastecido para enfrentar o inverno! --, resolveu se dar uma noite de folga. Só então percebeu que ainda não tinha cruzado com a formiga.

Que estranho, será que aconteceu um imprevisto? Duvido! Ela e aquela turma de operárias são tão prevenidas! Ou… Será que estou perdendo alguma coisa?

Estava.

Descobriu tudo assim que saiu perguntando pela floresta.
 -- A formiga agora passa a noite na balada! -- contou o grilo, louco para cutucar a cigarra.
-- Como assim?!? Aquela… aquela…certinha? Na balada?
-- Acontece que ela inventou a coreografia do passa-passa-folhinha!
-- Passa o quê?
-- Fo-lhi-nha! Todo mundo leva um estoque e se diverte dançando no ritmo das formigas. Elas montaram uma banda e ficam só na supervisão, estocando as folhas. Parece que todos os formigueiros da região já estão abarrotados!

A cigarra ouviu tudo aquilo mudinha. Na verdade, tinha ficado atônita, sem conseguir soltar nem um zzzzzzi desafinado. Mesmo assim, voltou para casa tentando se consolar: afinal, não morreria de fome no inverno, como a sua pobre irmã.
Pois é, tinha muita comida, só não tinha mais vontade de cantar.

Moral da história: mesmo quando a cigarra canta, a formiga dá baile!

* Esse reconto da fábula da mesma formiga com outra cigarra está publicado na revista Crescer de janeiro.

17 de jan. de 2014

Tempo


Às vezes, acontece por causa de certas palavras, ou nem isso: é só o jeito de dizer. Uma música, um cheiro, coisas inesperadas de repente me levam pra outros lugares, como se eu estivesse sentada na cabine de um trem, sendo conduzida em alta velocidade enquanto olho pela janela e vejo a paisagem, imensa, passando devagar, mostrando todas as meninas que fui. Então reconheço a garota sonhadora que tem quase 13 anos e se acha tão feia e boba: aceno imediatamente, ela sorri e no mesmo instante já está dentro do vagão, sentada ao meu lado. Ajeito sua cabeça no meu ombro, fico alisando seus cabelos longos e, juntas, adormecemos, ninadas pelo sacolejo rápido do trem, sonhando um tempo que nunca envelhece.

10 de jan. de 2014

Mudança

Voltar para casa depois de uma grande reforma é como regressar de uma longa viagem. As coisas, o lugar e a gente: tudo é igual, mas está diferente. Entre as paredes recém-pintadas da sala, que é a mesma e também é outra, experimento o frescor de olhar pra tudo que é tão familiar como se fosse a primeira vez.

5 de jan. de 2014

2014

gira
 o sol
 o mundo
 e o tempo

gira
 o pedal
 a roda
 e o pensamento
 e seguimos pedalando!